“Apuro o meu olhar com as miudezas”, escreveu Ana Jácomo, como quem sussurra um segredo aos que ainda se permitem ver o mundo sem pressa. E é justamente nesse tempo miúdo, quase imperceptível para os olhos apressados da crônica política, que o Rio de Janeiro começa a revelar o enredo silencioso da sucessão ao Palácio Guanabara em 2026. Em julho de 2025, o que se apresenta ao olhar atento não é um espetáculo, mas um fiapo de trama costurado nos bastidores, entre gestos pequenos e ruídos graves. Nada que se grite nos palanques, tudo que se sussurra nos corredores.
O pano de fundo nacional vibra com tensões que ora se dissipam, ora se adensam. O presidente Luiz Inácio Lula da Silva governa com equilíbrio instável, como quem dança sobre um fio estendido entre o Congresso faminto e o povo ansioso. Estancou a sangria da aprovação, retomou fôlego no Nordeste e em setores populares, mas ainda precisa driblar um centrão esgarçado, que cobra caro pela fidelidade rarefeita. Do outro lado, Jair Bolsonaro assiste do exílio eleitoral a cena que se desenha sem sua assinatura direta, mas sob sua sombra longa. Inelegível, mas não silenciado, ainda arrasta multidões, ainda balança estruturas, ainda decide destinos. Rio de Janeiro, onde sua imagem encontra eco e culto, ele acaba de mover uma peça fundamental.

Foi um gesto seco, preciso e devastador. Jair Bolsonaro, ao lado do filho senador Flávio, rompeu publicamente com o governador Cláudio Castro e com o presidente da Assembleia Legislativa, Rodrigo Bacellar. A ruptura não foi apenas uma resposta à demissão intempestiva de Washington Reis do comando da Secretaria de Transportes. Foi uma declaração de desalinhamento, um reposicionamento estratégico, um corte no tecido bolsonarista fluminense. A permanência da demissão por parte de Castro foi lida como traição. E a consequência foi o abandono. Jair e Flávio agora anunciam: o nome do seu campo para 2026 é Washington Reis.
A escolha não é casual. Reis, com a paciência de um bordador de alianças, costura um pacto antigo com linhas novas. Remonta a estratégia de 1998, quando Anthony Garotinho venceu com uma coalizão sólida entre a Baixada Fluminense, o interior conservador e a força territorial de Campos dos Goytacazes. O velho mapa ganha nova legenda: Wladimir Garotinho, prefeito de Campos e herdeiro da mitologia popular garotinhista, soma-se a Washington Reis, que por sua vez colhe frutos de sua longa trajetória como ex-prefeito de Duque de Caxias e operador político incansável. A benção bolsonarista, agora transferida a esse novo eixo, adiciona a esta construção um selo de autoridade simbólica que ainda reverbera profundamente no eleitorado conservador do estado.
Rodrigo Bacellar, que sonhava ser o sucessor natural de Castro e herdeiro da máquina bolsonarista, vê-se agora esvaziado. Seu nome perdeu temperatura. Seu projeto, apoio. A estrutura que o sustentava desmancha como névoa quando o sol desponta. Prefeitos da Baixada, que até ontem o aplaudiam nos eventos oficiais, silenciam ou já ensaiam passos em direção a Reis. Cláudio Castro, o governador que parecia indestrutível, agora contempla um futuro mais modesto: talvez o Senado, talvez o silêncio. O pacto que unia governo e bolsonarismo se dissolveu. E nesse dissolver, novas forças se movem.
Entre elas, uma observa tudo com o cálculo de quem conhece os ventos e os riscos. Eduardo Paes, prefeito da capital, mantém a serenidade dos que já atravessaram tempestades. Sua popularidade permanece firme no Rio. Sua biografia política, consolidada. Seu prestígio, intacto. Mas ele sabe: para ser candidato ao governo, precisa sair da orla e entrar pelo interior do estado, descer pelas ladeiras da Baixada, cruzar os vales do Norte Fluminense, dialogar com prefeitos e lideranças que não o reconhecem como um dos seus. A ascensão de Washington Reis, agora abençoado por Bolsonaro e Garotinho, torna esse caminho mais íngreme. E Paes, homem de tempo e cálculo, silencia. Observa. Mede. Espera.
O PSOL, por sua vez, caminha por outro trilho. Sem a preocupação de vencer, mas com a convicção de marcar posição. Lançará seu candidato, como sempre faz, e erguerá suas bandeiras: justiça social, direitos humanos, combate às milícias, defesa da vida. O partido já não é coadjuvante irrelevante. Em Maricá, Niterói e bairros da capital, ecoa entre intelectuais, juventudes e trabalhadores urbanos. Sua função é discursiva, mas sua presença é concreta. Sua candidatura será resistência e crítica, nunca conciliação.
O que se forma diante dos olhos atentos de julho de 2025 é um tripé instável. De um lado, Washington Reis e Wladimir Garotinho, somando força territorial, apoio popular e o endosso do bolsonarismo. De outro, um campo governista em frangalhos, onde Bacellar tenta sobreviver e Castro busca reposicionar-se. E num terceiro vértice, Eduardo Paes, ainda no limite entre o gesto e o recuo. O PSOL, como sempre, corre nas margens, abrindo clareiras na mata densa do pragmatismo político.
Nada está fechado. O Rio de Janeiro tem essa vocação para o imprevisível. O jogo é antigo, mas os jogadores mudam. O tabuleiro é o mesmo, mas as peças trocam de lugar. Nas próximas semanas, prefeitos escolherão seus lados. Partidos calcularão seus espaços. Líderes nacionais virão medir suas forças em solo fluminense. Até abril de 2026, quando os prazos de desincompatibilização chegarem, o mapa pode mudar completamente. Mas já se vê, nos pequenos gestos, nas miudezas, a formação de uma nova geografia política.
Apurar o olhar é tarefa de quem quer ver além do óbvio. É preciso ouvir os silêncios, decifrar os gestos, entender as ausências. Ana Jácomo, com sua delicadeza feroz, nos lembra que é nas miudezas que o mundo se revela. E o Rio, com sua política de sombras e relâmpagos, é lugar onde as miudezas dizem mais que os discursos. Em 2026, quem não souber vê-las, estará fora do jogo. Porque é nelas que o poder se esconde, antes de se revelar.
Fonte: Agenda do Poder